AMEAÇAS À GEODIVERSIDADE E GEOCONSERVAÇÃO


Foto: Prismas basálticos, Portela de Teira, Rio Maior. Formação rochosa com valor particular (Brilha, 2005)

«Quem é que ousou entrar
Nas minhas cavernas que não desvendo,
Meus tectos negros do fim do mundo?»

Excerto de “O Mostrengo”
Fernando Pessoa, Mensagem.

“É principal objetivo do projeto integrado proceder à proteção, valorização e ao aproveitamento racional dos recursos minerais, qualificados como tendo aptidão para ornamental, uma vez que estes bens de elevado valor económico são escassos e de natureza não renovável.” Esta frase encontra-se escrita logo no início do relatório síntese do Estudo de Impacte Ambiental para o projeto integrado do núcleo de exploração de pedreiras do Codaçal, da responsabilidade da Direcção Geral de Energia e Geologia. O núcleo referido situa-se no interior do Parque Natural da Serra de Aire e Candeeiros e sítio da rede Natura 2000. Apesar daquela frase denotar preocupação e sentido de responsabilidade, ela própria reflete e reconhece a enorme ameaça que a exploração de pedreiras representa para a geodiversidade, e quando essa ameaça se situa bem dentro de um parque natural e sítio da rede natura 2000, todos percebemos bem que não bastam as classificações protecionistas ambientais e naturais para afastar a ameaça quando estão em causa factores económicos e sociais muito elevados e prementes. O parque natural da Serra de Aire e Candeeiros é bem o exemplo dessa ameaça provocada pela actividade humana.


Foto: exploração de prismas basálticos em Portela da Teira, Rio Maior

Para além da ameaça representada pela exploração dos recursos geológicos, José Brilha identifica outras tais como: Desenvolvimento de obras e estruturas, gestão das bacias hidrográficas, florestação, desflorestação e agricultura, actividades militares, actividades recreativas e turísticas, colheita de amostras geológicas para fins não científicos e iliteracia cultural (Brilha, 2005). As ameaças aqui referidas são de maior ou menor grau, e requerem acções de prevenção de diferente dificuldade. Muitas delas podem ser resolvidas com medidas mais ou menos administrativas ou educacionais. No entanto não deixa de ser curioso que havendo hoje uma maior predileção por hábitos saudáveis ligados ao contacto com a natureza, se transformem esses hábitos em ameaças: desportos radicais em zonas sensíveis, multidões em marcha sobre trilhos não preparados para tanto pisoteio, etc. Na minha vida profissional já tive de me confrontar com técnicos que, fascinados pela beleza de uma paisagem, apresentavam projetos de desenvolvimento turístico que transformavam uma paisagem natural que tanto os fascinou numa paisagem artificial de parque temático, esquecendo a fábula da galinha dos ovos de ouro. Isto leva-nos à iliteracia cultural de que fala José Brilha.

José Brilha, no seu livro Património Geológico e Geoconservação – A conservação da natureza na sua vertente geológica, a páginas 51, recomenda que nos diversos estudos nas matérias sobre geodiversidade, se oiçam os geólogos, mas com formação na área da geoconservação. No estudo de impacte ambiental com que iniciei esta reflexão, no conjunto de 32 técnicos que fazem parte do corpo técnico que o elaborou, 14 são geólogos, sendo um com formação em educação ambiental e outro em geoconservação.  Apesar disso, a Federação portuguesa de espeleologia/grupo de estudos de ordenamento do território e ambiental/liga para a proteção da natureza afirmou, em sede de audição pública do referido estudo, que este menosprezava os impactes sobre o endocarso (ex. grutas). O estudo acabou por ter parecer favorável com condicionantes e recomendações.

Não é de estranhar que o estudo tivesse parecer favorável. Ou porque foi bem feito e bem avaliados os riscos e soluções, ou porque a pressão da actividade extrativa é enorme. A Câmara de Lisboa, num programa de melhoria de acessibilidades, entendeu remover parte dos passeios em calçada por serem pouco acessíveis aos idosos e pessoas com mobilidade reduzida. Choveram petições contra, uma delas, de uma suposta associação de apoio às artes, cultura e turismo cultural, afirmava: “que uma medida como esta é inaceitável pois vai contra a preservação do património cultural da cidade de Lisboa, a capital de Portugal”. Petições destas costumam ter forte adesão, no entanto o site indicado na petição já não funciona e da associação nada se encontra na internet. A Associação Nacional da Indústria Extrativa e Transformadora (ANIET) juntou-se, como era de esperar, à crítica e ao protesto contra a retirada das calçadas. Reconhecendo o seu valor estético e cultural, resta perguntar até que ponto é ético continuar a delapidar um património natural quando pode ser substituído por outro tipo de materiais? Como conciliar os serviço de valor cultural, artístico, social e económico que um determinado ecossistema nos fornece, com a conservação desse ecossistema?


Foto: pedreira na Serra dos Candeeiros

Apesar da enorme ameaça que a industria extrativa representa para a geodiversidade, foi graças a ela que se descobriu no parque natural da Serra de Aire e Candeeiros um dos mais bem conservados trilhos de pegadas de dinossáurios, possibilitando a criação de um monumento natural (Brilha 2005). Isto reporta-nos para o problema da geoconservação e do património geológico, e da multitude de conceitos associados.

O que se deve conservar? Geodiversidade com valor científico, somente? Com valor cultural, turístico ou educacional? Toda a geodiversidade? José Brilha diferencia o património geológico como aquele que tem valor científico e que se divide em geossítios (in situ) e elementos de geodiversidade (ex situ), daquele que só tem valor cultural, turístico, cultural, educacional ou outro, constituído por sítios de geodiversidade (in situ) e elementos de geodiversidade (ex situ). Todos, contudo, devem ser conservados (Brilha 2016).


Foto: afloramentos rochosos na Serra dos Candeeiros

Todos estes termos são demasiado recentes (Gray, 2004) e, no entanto, por motivos diferentes, a geoconservação foi assumida muitas vezes devido ao seu valor cultural atribuído. O caso dos dinossáurios, é um exemplo Apesar de a sua descoberta em termos científicos só ter ocorrido em meados do século XIX, os seus ossos foram sendo descobertos ao longo dos séculos tendo sido atribuídos a dragões e outros seres fantásticos. Em Portugal, nas falésias do cabo Espichel alguém descobriu as pegadas de dinossáurios no início do século XV e logo se atribuiu as mesmas à subida de Nossa Senhora montada numa mula que se teria ali avistado. No topo da arriba se construiu uma ermida, preservando o lugar. Esta lenda da Nossa Senhora da Pedra da Mua leva-nos à pergunta de qual deve ser a nossa motivação para valorizar e conservar a natureza abiótica. Seja qual for a motivação, esta deve assentar, no entanto, em dois princípios: o dever para com as gerações futuras de preservar o nosso património para que se torne deles, e o benefício directo para a humanidade e o mundo natural do uso sustentado dos recursos naturais (Gray, 2004).


Foto: construção religiosa sobre estrutura megalítica. Alcobertas, Rio Maior.

Bibliografia:






Comentários

  1. Olá João Alves!
    Foi muito interessante ler o seu texto sobre a indústria extrativa e a pressão que é exercida pelas empresas de extração. A extração de recursos geológicos é a face mais visível de todas as ameaças à geodiversidade enunciados por Brilha (2005) devido aos danos que tem na paisagem natural mas também alterações nos processos naturais de transporte e sedimentação, nomeadamente através da exploração de inertes nos leitos dos rios, o que pode ter consequências imprevisíveis. A tragédia de Entre os Rios, apesar das empresas terem sido ilibadas em tribunal, ficará ligada à extração de areia do leito do rio. É claro que a extração de recursos geológicos é essencial para a assegurar o desenvolvimento da sociedade, mas a pouca sensibilidade que existe para a geoconservação impede que sejam implementadas técnicas para a minimizar os efeitos que esta atividade tem para o ambiente. Foi interessante que tenha referido a questão com a calçada portuguesa porque tal como refere Gray (2004) muitas vezes os valores acabam por entrar em conflito, se por um lado é importante assegurar o valor cultural da calçada portuguesa é necessário a extração de recursos que constitui uma ameaça. Também nos Açores isso acontece, se por um lado a geodiversidade é o dos grandes motivos pela vinda de cada vez mais turistas o que muito contribui para a economia local, estes mesmos turistas representam uma ameaça à geodiversidade. Medidas têm sido adotadas para minimizar esta ameaça através da proibição e/ou limitação ao acesso a diversos locais mas, e mais uma vez, a pouca sensibilidade das populações para a geoconservação acaba impedir a eficácia de muitas medidas adotadas. É urgente alcançar um meio termo entre a capitalização dos valores da geodiversidade e a geoconservação sob pena de perdermos muitas dos seus serviços.
    Cumprimentos,
    Isabel Campos

    Brilha, J. (2005) . “Património Geológico e Conservação: A Conservação da Natureza na sua Vertente Geológica”. Braga. Palimage Editores. ISBN: 972-8575-90-4. consultado em: http://elearning.uab.pt/pluginfile.php/542945/mod_resource/content/1/Geodiversidade-artigos/Pat_Geol_Geoc_prot.pdf
    Gray, M. (2004). “Geodiversity valuing and conserving abiotic nature”. Department of Geography, Queen Mary, University of London. John Wiley & Sons Ltd, England. Consultado em: http://elearning.uab.pt/pluginfile.php/569069/mod_resource/content/1/geodiversity.pdf

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    1. Muito obrigado pelo seu comentário, Isabel. De facto, ao ler a sua reflexão no seu blog, e agora aqui neste comentário, surgiu-me a dúvida sobre como os Açores terão de lidar com a pressão turística. Tendo em conta os preços baixos dos vôos, já assisti a excursoes para irem almoçar aos Açores o famoso cozido, e voltar no mesmo dia. Temo bem que a pressão turística possa deteriorar a imagem de paraíso que temos dos Açores. Lembro-me de alguém dizer uma vez que era muito difícil levar um bailado aos Açores por falta de alojamento que pudesse albergar uma orquestra sinfónica, um coro e um corpo de baile. Aumentar o número de camas poderá ser bom para a economia regional, mas será uma pressão perigosa, não só sobre a geodiversidade que abunda nos Açores, como sobre os ecossistemas que ela proporciona. Impedir o aumento da industria turística teria de passar por uma distribuição equitativa só possível por uma fiscalidade em benefício dos Açores, mas isso já é outro assunto.

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    2. Olá João!
      Desculpe a resposta tardia mas só agora vi o seu comentário. De facto a relação custo ambiental vs benefícios económicos em relação ao turismo nos Açores é o que mais tem preocupado os Açorianos. As vantagens económicas são inegáveis e fundamentais. As atividades económicas são muito limitadas: as célebres pastagens, que tanto têm alterado a paisagem e contribuído para a degradação dos solos, estão mais ou menos condenadas com o fim das cotas de produção do leite, a pesca nem sempre é fácil tendo em conta que estamos no meio do Atlântico Norte, e apesar de termos produtos de excelência como o queijo de São Jorge e o atum de Santa Catarina, o melhor do mercado!!!, ambos da ilha onde resido, a produção é pequena e existe sempre dificuldades na exportação dos produtos. O turismo representa uma fatia importante na economia e a pressão turística já se faz sentir principalmente nas ilhas de São Miguel e Terceira, onde chegam os voos lowcost, nas ilhas mais pequenas, como a ilha de São Jorge, pela dificuldade em arranjar voos, apenas chegam turistas que vêm à procura da ilha para passeios pedestres e a prática de canyoning e por isso essa pressão não se faz sentir.
      Como referiu há uns anos atrás o número de camas era muito reduzidos, o que atualmente não acontece. O número de hotéis e casas transformadas em AL, que têm colocado problemas sérios às populações locais porque a habitação é muito cara, têm-se multiplicado. Locais onde era possível estar simplesmente a apreciar a paisagem estão atualmente cheios de gente. Muitas medidas têm sido tomadas pelas entidades responsáveis como limitar o número de pessoas que pode visitar alguns locais como o famoso ilhéu de Vila Franca e a proibição total como aconteceu com a Caldeira do Faial, as visitas apenas se fazem acompanhadas com um técnico do ambiente. Atualmente está em estudo a proibição da subida ao piquinho da Montanha do Pico. Consecutivamente os Açores são eleitos como destino sustentável por diversas entidades internacionais o que se deve aos esforços feitos nomeadamente pelas entidades governamentais. Claro que há sempre mais a fazer.
      Vim viver para os Açores em 1999 e as mudanças são gigantescas, principalmente nas "ilhas grandes" mas ainda podemos apreciar a enorme beleza deste local mágico!! O João disse que nunca veio aos Açores mas venha, garanto-lhe que não se vai arrepender!! Se precisar de ajuda na escolha do roteiro é só dizer!!! :)

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    3. Muito obrigado pela resposta. Um dia irei com certeza visitar os Açores. Obrigado pela oferta do roteiro.

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  2. Olá João,
    Obrigado pela excelente reflexão, com exemplos práticos e que facilmente poderiam levar alguém menos habituado a estas questões a perceber a problemática da geoconservação, alicerçada nas ameaças à geodiversidade e nos benefícios da sua implementação.
    De facto, a exploração dos recursos geológicos, com incidência na extracção de inertes, é uma das ameaças mais evidentes e que mais facilmente influenciam a opinião pública, quer pelo impacto na paisagem e nos restantes recursos naturais, quer pela sua importância económica em qualquer sociedade (cf. Brilha, 2005), tal como exemplifica com a questão da calçada portuguesa (cf. a génese diversa dos defensores da sua manutenção).
    Estou em crer que, na grande maioria dos casos, terá de haver uma estratégia consertada entre diferentes entidades para que se consiga, primeiro, vencer a iliteracia cultural, a ameaça que, de certa forma, estará na base de todas as restantes (Gray, 2004), e modo a termos e sermos cidadãos mais informados, capazes de ultrapassar a ausência de protecção legal muitas vezes associada, de modo a darmos a devida atenção à geodiversidade que nos rodeia e que tanta importância tem no equilíbrio do planeta.
    Ora, perante um cenário em que o homem está na génese da grande maioria das ameaças que condicionam a diversidade geológica, muito à frente dos agentes naturais ou da erosão (Leenaers et al., 2004), urge tomar medidas mitigadoras, na ânsia de preservar estas riquezas naturais para as gerações vindouras. Assente numa mudança colectiva, onde a responsabilidade é partilhada por todos, é necessário promover um uso sustentável dos recursos naturais, bem como uma alteração do paradigma com vista à diminuição dos efeitos negativos, preservando a diversidade geológica.
    É pois com só com a aposta geoconservação que podemos apostar na correcta gestão dos elementos geológicos, com inegável valor científico, educacional, turístico ou cultural, transversais que são a toda a sociedade (Brilha e Galopim de Carvalho, 2010).

    Fontes:
    - BRILHA, José (2005). Património geológico e geoconservação - a conservação da natureza na sua vertente geológica. Palimage Editores.
    - BRILHA, José e A. M. GALOPIM DE CARVALHO (2010). Geoconservação em Portugal: uma introdução. In. NEIVA, J. M. Cotelo et al. (eds) (2010). Ciências geológicas: Ensino, Investigação e sua História. pp. 435-441.
    - GRAY, Murray (2004). Geodiversity: valuing and conserving abiotic nature. John Wiley and Sons, Ltd.
    - LEENAERS, H. e H. SCHALKE (2004). "Planet Earth in our hands". In. NIELD, T. e E. DERBYSHIRE (eds) (2004). Earth sciences for Society.

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    1. Marco Livramento,
      Obrigado pelo comentário. De facto a geoconservação é necessária. Procurar materiais menos susceptíveis de prejudicar a geodiversidade é um imperativo, no entanto, as questões sociais e financeiras são muito fortes e problemáticas, pois as alternativas para as empresas que fecham e geram empregos são escassas.
      Cumprimentos,
      João Alves

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