GEODIVERSIDADE. CONCEITOS, VALORES E AMEAÇAS


então o SENHOR Deus formou o homem do pó da terra e insuflou-lhe pelas narinas o sopro da vida, e o homem transformou-se num ser vivo (Gn 2,7). É com esta afirmação que o livro do Génesis nos relata o mito da criação do Homem: feito do pó da terra. A acreditar no mito seríamos, os seres humanos, feitos do mesmo material de que são feitas as rochas e a Terra, e que por força de um sopro divino nos transformamos em seres vivos. A afirmação de Stanley, de que a biodiversidade é parte da geodiversidade (Gray. M. 2004) fica assim iluminada por aquele antigo relato fundador da nossa civilização, porque tu és pó e ao pó voltarás (Gn 3,19), continua o mesmo relato.


Um dos valores da Geodiversidade é o valor cultural e nele se insere o religioso e o mítico (Brilha, J. 2005): o monte Uluru, um monólito sagrado para os aborígenes da Austrália, o monte Sinai sagrado para as três religiões do Livro, o monte Olimpo dos gregos, e o monte Moriá em Jerusalém, umbigo do mundo, são monumentos geológicos que demonstram bem o valor que o Homem consegue dar à morfologia terrestre. A consciência ocidental de que somos feitos do pó da Terra, e o valor que damos a certas formações geológicas poderiam levar-nos a pensar que sem a termos definido ao longo dos séculos, teríamos, contudo, interiorizado a definição proposta pela Royal Society nos finais do século XX para a geodiversidade:  variedade de ambientes geológicos, fenómenos e processos ativos que dão origem a paisagens, rochas, minerais, fósseis, solos e outros depósitos superficiais que são o suporte para a vida na Terra (Brilha, J. 2005). Poderíamos continuar a pensar que a sua conservação e preservação estariam assegurados e que nenhuma ameaça pairaria sobre ela para além dos riscos naturais, e, no entanto, não é assim: o Homem consegue prestar culto a uma colina e devastar o monte ao lado para retirar-lhe a pedra que colocará sob os pés.


Para além do valor cultural, com que comecei esta reflexão, a geodiversidade tem outros valores. Numa perspetiva antropocêntrica o seu valor provêm do facto de ser o suporte da vida. Na perspetiva ecocêntrica ela possui valor intrínseco independentemente da menor ou maior valia para o Homem (Brilha, J. 2005). Se no monte Sinai vemos um lugar a que subimos para chegar a algo fora da Terra, para os aborígenes da Austrália, o monte Uluru é, numa leitura demasiado simplista, a representação dos seus antepassados e um portal até eles, porque é o próprio lugar onde estão. Stanley, inspirado, diz-nos que a geodiversidade é: the link between people, landscapes and culture; it is the variety of geological environments, phenomena and processes that make those landscapes, rocks, minerals, fossils and soils which provide the framework for life on Earth. (Gray, M. 2004).


José Brilha, no seu livro “Património Geológico e Geoconservação”, afirma que Portugal tem uma geodiversidade assinalável se considerarmos a sua pequena dimensão. Para quem como eu vive na orla mesocenozóica ocidental, pode testemunhar essa enorme diversidade geológica de que fala José Brilha, e os vários serviços que essa geodiversidade fornece. No coração do vale tifónico de Caldas da Rainha podemos perceber o enorme valor económico que a geodiversidade proporciona a toda a região: desde as águas termais, com o primeiro hospital da Europa, ao sal e pedreiras de Rio Maior, ao gesso da Dagorda de Óbidos e ao aproveitamento das correntes de água e dos ventos para a produção de energia. A formação da Lagoa de Óbidos e os monumentos construídos com o aproveitamento da sua morfologia e a presença de pegadas e ossos de dinossáurios, conferem-lhe valor histórico inestimável. A somar, temos as magníficas paisagens das falésias da costa atlântica acrescentando valor estético, onde o sítio da Nazaré ainda acrescenta o histórico e o cultural.






            Se tomarmos a auto estrada A8 em direcção a Lisboa, cuja construção constituiu, e constituiu, uma ameaça às encostas declivosas e movediças da Usseira, mas que permite viajar rápido e em segurança, poderemos ver mudanças de paisagem a sucederem em espaços tão curtos como a antiga légua que a paisagem cheia de histórias antigas nos faz lembrar, ao longo desta formação a que chamaram vale tifónico, onde a paisagem diversificada assume um enorme valor estético. Vale onde os rios meandram em direcção ao mar numa extensa planície entre Óbidos e Peniche. Numa formação elevada, onde a água da Lagoa de Óbidos quase vem tocar, ergue-se o castelo aproveitando a posição geoestratégica que o relevo lhe confere. Logo a seguir deparamos com aquilo a que chamo a primeira muralha de defesa de Lisboa: o planalto das Cesaredas onde, junto à Columbeira e Roliça, se acoitaram os franceses para impedir o avanço das tropas luso britânicas. Neste planalto que vai até à Lourinhã podemos encontrar uma panóplia de geosítios, desde algares e grutas, a vales profundos e a escarpas que armazenam a água mesmo em período de seca e que permitiam o aproveitamento da sua energia para mover azenhas, enquanto nos montes os moinhos aproveitam os ventos marítimos. Na mesma escarpa o moinho de vento no alto mirando em baixo a azenha, numa riqueza energética incrível. Imaginando os dinossáurios que por aqui caminhavam, conseguimos entender o conceito de geodiversidade e o enorme valor que ela possui, que obriga à sua conservação e ao aproveitamento do seu valor científico e educativo.


Mais do que uma geoconservação centrada em parques temáticos, é preciso educar e ensinar a perceber a paisagem, o terreno e o espaço que nos envolve diariamente, o seu potencial e valor para os ecossistemas, mesmo quando visto da auto estrada, pois ao desfazer da curva que o planalto das Cesaredas obrigou a fazer, os nossos olhos mirarão ao longe a Serra do Montejunto. E se tivermos um pouco de tempo, e sairmos da A8, em direccção ao vale do rio Bogota que desce do Montejunto, cuja geomorfologia permite o cultivo dos pomares de Pêra Rocha, veremos ao longe a silhueta do velho vulcão que é a serra de Nossa Senhora de Todo o Mundo, e andámos dez quilómetros desde Óbidos. É o “geoparque” da A8.



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Bibliografia:






Comentários

  1. Gostei muito da abertura da sua reflecção, João. Gostaria de deixar evidenciado a preocupação que se está tendo com a sobrexploração dos recursos abióticos da natureza. É bastante elevado o que ela benevolentemente nos fornece. Nós mesmos sabemos ser uma enorme gama de recursos que utilizamos em nosso cotidiano, se fazendo presentes numa quantidade de equipamentos, materiais e alimentos.

    A geodiversidade não pode continuar sofrendo tal agressão. Não é porque somos contra a extração de seus elementos, mas porque queremos tê-los no presente e nossos filhos e netos também tenham no futuro. Para isso basta explorar esses preciosos recursos com responsabilidade. Uma dessas formas seria ” Os princípios de uma estratégia sustentável, que para materialism geológicos deva ser o de reduzir o uso de recursos virgens. Isto pode ser conseguido por: minimização, reuso, reciclagem, substituição, retrogradação e replicação, e instrumentos fiscais.” (Murray Gray) Assim não deixariíamos de ter assegurado o bem-estar dos consumistas e pouparíamos a natureza dessa exploração predatória. Gray afirma ainda que seria uma boa medida de se fazer com que desmateralizassem a sociedade.

    Bibliografia:
    Gray, Murray, Geodiversity e Conservation

    Zilmar Figueiredo

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  2. Boa tarde João Alves!
    Quando li o seu interessante post lembrei-me logo da frase de Carl Sagan “nós somos feitos de matéria estelar”. E facto as variedade de elementos químicos que existe na natureza permite-nos dizê-lo.
    A análise que fez da relação que sempre existiu do Homem com os materiais geológicos é muito interessante. São diversos os exemplos que apresenta. Este valor cultural e espiritual é muito importante e é talvez por ele que podemos apelar para a importância da conservação. Segundo Galopim de Carvalho, autor do prefácio da obra de Brilha (2005), é importante que os estudiosos da área da geologia divulguem e participem na defesa do Património Natural para que as potencialidade turísticas e económicas destes locais sejam reconhecidas.
    Cumprimentos,
    Isabel

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  3. Olá João,
    Gostei da abordagem.
    De facto, muitas vezes, não valorizamos devidamente a geodiversidade que nos rodeia. Ou pelo menos, até que a mesma nos seja explicada ou que sejamos confrontados com alguma situação que faça perigar a vida humana.
    Não questionado a necessidade e a importância da geoconservação de alguns geossítios, a verdade é que me parece imperioso estabelecermos como prioridade darmos a conhecer, divulgar as riquezas que possuímos, educar, pois só conhecendo somos capazes de mais facilmente conservar e preservar.
    Embora seja uma realidade que conheço mal, pergunto se alguns desses locais referidos têm sido alvo de uma adequada divulgação, acompanhada de uma geoconservação assertiva? Muitas vezes o que falta é serem desencadeados os mecanismos para que se consiga ir um pouco além do valor económico da riqueza geológica que temos. Não podemos esquecer que o homem como agente geológico, deve promover, simultaneamente, a conservação e o uso racional desta componente não viva do património natural (Brilha, 2005).
    Por exemplo, salvo casos pontuais, parece-me que o nosso País ainda não foi capaz de desenvolver de forma contundente um verdadeiro geoturismo, que ao apoiar-se nos princípios do turismo sustentável (não se limitando ao espaço natural, podendo ser viável em pleno coração das cidades – Liccardo, 2010; Newsome et al., 2011) pode gerar receitas que contribuem para o desenvolvimento das comunidades locais (Carcavilla et al., 2008). É fundamental alinharmos eixos estruturantes como conservação da natureza, ordenamento do território, politica educativa ou turismo da natureza (Brilha, 2005). E parece-me que qualquer um destes aspectos podia ser implicado no cenário que descreve.
    Na Madeira, por exemplo, tem havido um esforço para se conseguir valorizar alguns geossítios ou geomonumentos, com a criação de roteiros geoturísticos, numa derivação do nosso Turismo de Natureza. Ainda assim, há um longo caminho a percorrer.

    CARCAVILLA, L.; J. J. DURAN e J. LOPEZ-MARTINEZ (2008). “Geodiversidad: concepto y relación con el patrimonio geológico”. In. Geo-Temas. N.º 10, p. 1299-1303.
    NEWSOME, D. e R. DOWLING (2010). “Setting an agenda for geotourism”. In NEWSOME, D. e R. DOWLING (Eds.) (2010). Geotourism: The tourism of geology and landscape. Good Fellow Publishers. pp. 1-12.
    LICCARDO, A., G. F. PIEKARZ, G. F. e E. SALAMUNI (2008). Geoturismo em Curitiba. Curitiba. Mineropar.

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  4. Em primeiro lugar quero agradecer aos colegas que comentaram. Os vossos comentários foram preciosos para a minha aprendizagem. Em segundo lugar quero pedir desculpa pelo erro clamoroso em chamar ao vale tifónico das Caldas da Rainha, vale sifónico. Já corrigi. Isto deve-se a deformação profissional pois o termo sifónico faz parte do meu jargão profissional.

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