BIODIVERSIDADE EM ESPAÇO URBANO


A ideia que se tem do paraíso é a de um jardim cultivado e situado num vale de águas correntes.
“Depois, o Senhor Deus plantou um jardim no Éden (Gn2, 8)… Um rio nascia no Éden para regar o jardim, (Gn 2, 10)… O Senhor Deus levou o homem e colocou-o no jardim do Éden, para o cultivar e, também, para o guardar. (Gn 2, 15)”
Um jardim cercado de muros, de onde se pode ser expulso, e que é um espaço aprazível, ordenado e controlável. Contrário à Natureza que nos rodeia, difícil de domar. Na sua obra “Arquitetura e Sociedade”, Michel Freitag afirma que o acto construtor original, não foi a obra que edificou uma cabana entre as árvores, mas a que abriu e circunscreveu uma clareia na floresta, roubando-lhe o espaço para o tornar sagrado e de onde pudesse olhar o Céu. Quando o Homem deitou a primeira semente à terra depois de lhe abrir um sulco com a relha do arado, e guiou a água da nascente por um valeiro, percebeu que podia suavizar a secura da “clareira” com a sombra fresca do sicômoro e a frescura das fontes, e imaginou que seria assim o paraíso de onde fora expulso para ser exilado na floresta medonha e assustadora.
O jardim é assim o lugar de deleite e recreação, fresco e sombreado onde se ouvem correr as fontes e onde os pássaros nos deleitam com o seu canto. Quando na rude idade média se cultivaram jardins, dentro dos muros altos de um convento, com ervas alimentares e medicinais e árvores de fruto, para prestarem um serviço à comunidade para além do deleite idílico, não faltou, no entanto, a roseira a lembrar que nem só de pão vive o homem. Este jardim, prestador de serviços e de prazeres, ordenado e “limpo”, perdurou até aos nossos dias. No decurso da minha profissão sou demasiadas vezes confrontado com a exigência das pessoas para que as árvores de jardins e passeios sejam podadas, como se dessem frutos, e as ervas aparadas para que não apareçam cobras e lagartos. É difícil convencer populações que durante anos se envergonhavam de trazer as fileiras das vinhas com erva, (que agora os técnicos obrigam a que haja), que esta, a erva, é necessária ao habitat de animais que prestam serviços a nós e às culturas. Cobras e lagartos então, é sinal de que se perdeu o controle para uma natureza desenfreada. Chegam a pedir que se derrubem árvores só porque se enchem de pássaros que lhes sujam a soleira do portão. Ao argumento de que comem os insectos, prestando-nos um serviço, franzem o sobrolho.
O conceito de biodiversidade: a variedade entre os organismos vivos de qualquer origem incluindo, entre outras coisas, a terrestre, a marinha e outros ecossistemas aquáticos, e os complexos ecológicos de que eles fazem parte; isto inclui a diversidade dentro das espécies, entre espécies, entre espécies e ecossistemas.  (Millennium Ecosystem Assessment (2005), é um conceito arredado e desconhecido dos jardineiros municipais, dos usufrutuários dos jardins e dos responsáveis, políticos e técnicos, pelos jardins e parques urbanos das nossas vilas e cidades.
O espaço urbano pode ter variadas definições conforme os operadores urbanísticos, mas, simplificando, podemos resumir o espaço urbano nas suas duas características principais: uma área densamente povoada em superfícies extensivas impenetráveis, no sentido de se encontrarem num estado artificial de pavimentação mais ou menos impermeável. Esta simplificação dá-nos, contudo, a ideia do que são as características ambientais e ecológicas principais e essenciais de um sistema urbano. (Wu, J. 2014)
É do senso comum que a urbanização afecta a biodiversidade e as condições ecológicas de um lugar. De um modo geral pode dizer-se que o desenvolvimento urbano faz decrescer o número de habitats para as espécies nativas e faz crescer a fragmentação de habitats quer para a maior parte das espécies nativas como para as exóticas. Os efeitos da urbanização na biodiversidade variam com os grupos taxonómicos, as condições ambientais e os aspectos sócio económicos. (Wu, J. 2014). É também do senso comum que as cidades são as principais produtoras de gases de efeito estufa e de poluentes, pondo em causa a saúde dos seus habitantes e o ambiente de uma forma geral. Deste reconhecimento nasceram as cidades jardim do final do século XIX. A biodiversidade é o suporte dos ecossistemas que, através dos serviços que prestam, afetam o bem-estar humano, aumentando as funções dos ecossistemas e tornando-os mais resilientes às agressões e mudanças climáticas.
Um novo paradigma torna-se assim necessário no desenho e planeamento das cidades, onde a interação com o espaço verde e aquático não seja só visto pelo serviço recreativo, contemplativo e estético mas que torne o espaço mais sustentável, menos dependente dos serviços dos ecossistemas exteriores, como a purificação do ar, o suavizar das “ilhas” de calor, a redução das emissões de carbono e o fornecimento de víveres.
Tem-se por certo que aos centros urbanos falta flora e fauna, quando na realidade muitas cidades são ricas em biodiversidade. O problema é que os serviços ecossistémicos fornecidos por essa rica e variada biodiversidade são muitas vezes subvalorizados, para além dos aspectos estéticos. Na conferência da Convenção para a diversidade biológica (CBD), reunida em Bona, em 2008, foi proposta a criação de um indicador para medir a biodiversidade nas cidades (CBI) a que se deu o nome de Singapore Index, em reconhecimento do ministro de Singapura promotor da ideia. Este é um instrumento eficaz para que os governos das cidades possam avaliar o esforço feito na protecção e desenvolvimento da biodiversidade nas suas cidades (Chan, et.al. 2014)
As cidades são lugares com grande potencial para a conservação da biodiversidade e para a sua promoção. No entanto também são lugares onde a biodiversidade se encontra perante grandes desafios por causa da urbanização e do processo do crescimento urbano. (Farinha-Marques, P. et al. (2011))
Viver no campo, ou viver na cidade? E porque não viver ao mesmo tempo em ambas, como propõe Howard na sua utopia da cidade-jardim? Espero que outra solução possa ser encontrada, pois temo a cidade sem esquinas de Brasília ou os espaços livres que Corbusier desenhou onde nem os gatos arranjam tempo para os cantares do cio. Uma Alfama com sardinheiras à janela, gatos estirados ao sol mirando os lagartos que se escondem nos bueiros da muralha. Um entardecer na varanda sombreadas de Santo Estevão, admirando o voo das gaivotas e a gincana estonteante de bandos de estorninhos sobre o azul do Tejo. Pardais nos telhados, morcegos hibernando no forro das açoteias, enquanto as andorinhas decoram os beirados. Na calçada do largo, um tapete violeta das flores de jacarandá sob o andor da Senhora da Saúde. Um grilo que descuidado saiu de debaixo da pedra para cair nas garras de um garoto atrevido. A cidade perfeita!
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Bibliografia
Azevedo, I.T.T. (2013). Os Jardins da Cidade- do jardim privado aos espaços verdes enquanto elementos estruturantes do espaço urbano. Coimbra
Chan, L., Hillel, O., Elmqvist, T., Werner, P., Holman, N., Mader, A. and Calcaterra, E., 2014. User’s Manual on the Singapore Index on Cities’ Biodiversity (also known as the City Biodiversity Index). Singapore: National Parks Board, Singapore.
Farinha-Marques, P. et. al. (2011)“Urban biodiversity: a review of current concepts and contribution to multidisciplinary approaches” FCUP, Porto.
Millennium Ecosystem Assessment (2005) Ecosystems and Human Well-being: Biodiversity Synthesis. World Resources Institute, Washington, D.C.
Wu, Jainguo (2014). “Urban ecology and sustainability: The state of the science and future directions”. Landscape and Urban Planning 125. 209-221 – Elsevier B.V.

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